segunda-feira, 9 de março de 2009

O tempo da surdez acabou

Edna Delmondes*

É hora da área pública ouvir o coro polifônico da sociedade e dar respostas concretas e ágeis às demandas criadas pela ampliação do espaço público da liberdade.

“Torna-se imperativo abrir os ouvidos e concentrar-se em questões da atualidade como justiça e democracia. Rechaçar o subjetivismo dos valores, para afirmar os critérios de verdade, não no conceito tradicional de ciência, mas na legitimidade de valores concretos que tenham como epicentro o princípio ético das conexões entre teoria e prática. Sob muitos aspectos recuperar o conceito da opinião pública, não pelo prisma da manipulação ou do utilitarismo, mas associando-o à conscientização do cidadão e à sua capacidade de recusar-se a submeter-se à visão de aparência.”

Desse texto de Francisco Viana, em “A Surdez das Empresas: como ouvir a sociedade e evitar crises”, que está agora chegando às livrarias, pode-se extrair duas lições, se a perspectiva for a comunicação pública dos Tribunais de Contas brasileiros. A primeira delas é o conceito de tempo. Enquanto o tempo da empresa é imediato e com repercussão, também, imediata, o tempo no serviço público é lento  elástico. O agente público acredita na sua estabilidade, aposta na sua invulnerabilidade, “acredita que seu tempo é amplo”. Talvez, tão “interminável” quanto o tempo na Idade Média, antes da ascensão do capitalismo mercantil, lá pelos idos do século XII, quando o tempo era inteiramente dedicado à salvação da alma.

Entretanto, esse tempo linear e infindável foi substituído, ainda na mesma Idade Média, pela dinâmica do capitalismo mercantil. Desde então, vivemos um ciclo do tempo esférico que contém todas as atividades da vida num mesmo universo temporal. Essa visão de tempo ampliou-se com o tempo real, da internet. Hoje, portanto, o tempo do serviço público e o tempo da empresa são um tempo só. E não é preciso fazer grande esforço para constatar a nova realidade. Basta olhar em volta e ver que o cidadão tem participado mais ativamente da vida pública. A democracia está ficando, a cada dia, mais participativa. Os cidadãos agora têm “um megafone nas mãos” e “a voz das ruas, amplificada pela universalização da informação, necessita ser ouvida” O corpo político – a sociedade – está cada vez mais atento e cada vez mais irá cobrar atitudes da área pública.

A segunda constatação inspirada pela “A Surdez das Empresas” é que vivemos em um mundo polifônico. Não há como ser surdo, sob pena de uma reação hostil pela sociedade na busca da exigência dos seus direitos; na busca de maior controle social, na defesa do legítimo direito que as coisas públicas funcionem eficazmente. Tudo isso coloca para os Tribunais questões esfingéticas, do gênero decifre-me ou lhe devoro: como aliar gestão e comunicação? Como tornar visível o que está sendo feito de positivo pelos Tribunais? Como prevenir crises que ameaçam a imagem-reputação dos Tribunais?

A surdez tira a capacidade de perceber as necessidades da sociedade, ocorrendo, por consequência, uma “oposição da imagem à reputação e à identidade”. A imagem é fugaz, manipulável e não se sustenta em si mesma. A identidade e a reputação ficam diluídas e vulneráveis neste cenário de surdez. Por imagem, entenda-se tudo aquilo que podemos controlar. Uma campanha na televisão, por exemplo. Por reputação, entenda-se aquilo que não se controla. Por exemplo, o conceito que a sociedade tem de uma instituição pública ou uma empresa. Por identidade, aquilo que se é efetivamente. Ou seja, a missão e valores anunciados pela sociedade. São elos de uma mesma corrente comunicacional. Precisam estar integrados.

Há ainda uma terceira lição inspirada pelo livro: é que a dependência de diversos recursos  da capacidade de lidar com ameaças e incertezas e a presença de conflitos  impõe a busca da convergência, do consenso. Esta convergência depende, essencialmente, da comunicação interna. As instituições são feitas da argamassa de uma prática de cultura. Não adianta ambicionar ser o que não se é, o que se é apenas no discurso. É dessa argamassa interna que se fará a boa comunicação externa, aquela que chega à mídia. Há, na prática, uma relação de interdependência entre estes dois elementos, procurando, como desafio, aumentar a cooperação e reduzir o conflito.

Temos a aprender também que “o relacionamento positivo e duradouro com a sociedade exige flexibilidade para a mudança de conceitos na convivência diária com a oposição entre verdade e erro, aparência e realidade. Ou, em lugar de instituir conceitos, a convivência com a sociedade exige a construção e reconstrução permanente de conceitos”.

O conflito entre o discurso e a ação, e potencializado pelo conceito de tempo, pode ser minimizado por uma dialética fundamentada na razão e na ética, podendo significar o seu alinhamento. Pois a comunicação não é só “ouvir”. Só “ouvir” significa “rigidez” de audição, produto da conveniência, mas “escutar” a si mesmo, auscultar a voz da sociedade. Comunicação é compreender e agir.

Fala-se muito em comunicação nos Tribunais de Contas. E se tem avançado. Tribunais de Contas têm implementado ações de comunicação de seus resultados. Na Bahia, por exemplo, tivemos em outubro do ano passado o primeiro mídia training, aliás realizado pelo autor de “A Surdez das Empresas”. Foi um momento de intensas reflexões. Por todo o país, seguindo a trilha da consolidação da democracia, o tema da comunicação tornou-se uma constante. Está se descobrindo que a comunicação é um valor, um ativo essencial para o relacionamento de qualidade com a sociedade. Entretanto, há muita ação a ser feita. Este conceito de tempo no serviço público precisa ser revisto. Não há mais tempo a perder, sob pena de sermos julgados negativamente por este outro tribunal que é a opinião pública. É dela, da opinião pública, que depende a construção de uma reputação em sintonia com as novas demandas de uma sociedade democrática, que só tem feito progredir na ampliação dos espaços públicos de liberdade.

* Ouvidora do Tribunal de Contas do Estado da Bahia.