sábado, 20 de fevereiro de 2010

Geração de referência

Geração de referência

Francisco Viana
De São Paulo

São duas irmãs. Uma, Marina, mais conhecida por Mel, foi aceita para o PHD em economia na Universidade de Yale. Tem 21 anos - sim, 21 anos - e interessada por política e literatura. A outra, Fernanda, por sua vez, foi aceita para PHD em Columbia, no curso de Neurociência. Tem 23 anos. São irmãs, ambas baianas, Marina e Fernanda Delmondes, ao conquistar posições em duas das oito mais antigas e conceituadas universidades americanas, no mesmo patamar de Havard e Princeton, talvez ainda não saibam, mas estão contribuindo para quebrar um mito: a alienação das novas gerações.

Nada mais falso. São , sim, gerações cosmopolitas que se identificam com o mundo e estão por toda parte. Não mais se lamentam como Gonçalves Dias com a sua Canção do Exílio ( 1843), na realidade ele não estava exilado mas financiado por Dom Pedro II para estudar na Europa; ou como Casimiro de Abreu( 1855), que falava de "saudades tamanhas das montanhas" e reclamava da infelicidade da vida de "desterrado". Também estava estudando. Naquela época, como no século XVIII, apenas os ricos ou bolsistas do governo podiam sair do país para estudar. E eram em número escasso.

Exílio mesmo amargou a geração dos anos 60 e 70 do século passado que se viu obrigada a deixar o país tangida pelos tacões da ditadura militar. Essa sim sofreu na carne o desterro real. E vale lembrar sentiu saudades do país, mas não foi dada a arroubos lamuriosos dos idos do romantismo. Mas foi, de fato, a primeira geração de brasileiros a viver uma experiência internacional em grande escala. Não éramos, então, um povo cosmopolita. E quando vivíamos exilados era porque a terra estrangeira estava aqui mesmo - presente nos ciclos de autoritarismo - e não lá fora. Nos anos 90 o cenário começou a mudar. Veio a globalização, o brasileiro passou a viver fora, como se diz, em números crescentes. Tem sido uma experiência única. Em grande escala de verdade.

Não se fala mais das do nosso céu, que tem mais estrelas( no dizer de Gonçalves Dias ) ou da "nossa eterna primavera" ( Casimiro de Abreu). O que predomina é a vontade de aprender, o sentimento de que a o Brasil é o mundo e o mundo é o Brasil. Há realismo, há estudo, há vontade de superação e integração. É uma nova forma de ver a vida. Às vezes conversando com alunos fico com a sensação que eles são os novos descobridores de novos mundos. Os novos Colombo. Falam, muitas vezes, da China, de Nova Iorque e da Europa como se estivessem falando do próprio bairro.

Alienação nenhum. Se não falam da revolução ou do socialismo é porque a revolução e o socialismo saíram de cena. Vão voltar em algum momento, vão se recriar, mas o momento é outro: é a inclusão social, o capitalismo social, a reforma. E isso as novas gerações falam, discutem. Afinal, quem acendeu o estopim do impeachement de Collor, senão a geração dos chamados cara pintadas? Esse foi um mito que a minha geração criou - sou da geração que lutou contra ditadura na década de 70- , talvez para camuflar a nossa própria derrota. Que, aliás, no curso da história tem se revelado em vitória. Os derrotados foram os supostos vencedores, os militares. A história estava do lado dos aparentemente vencidos. Ou talvez tentemos rotular as novas gerações porque, como disse Celine, uma geração quer sempre assassinar a outra. E, nós, certamente não queremos ser assassinados.

Mas a verdade é: a alienação não é a tônica. E essa constatação pode ser feita não só fora do Brasil, mas aqui mesmo, perto de nós. Vejamos o caso da Bahia. Quando se abriu em 2007 o inventário da herança carlista, entre outros escombros, encontrou-se um número trágico: 2 milhões de analfabetos. Sim, 2 milhões de analfabetos. Foram gestados em silêncio ao longo de quatro décadas que a publicidade vendeu como milagrosas para os baianos. O milagre foi sobreviver ao "milagre" carlista. Nos últimos três anos cerca de meio milhão de pessoas foram alfabetizadas. Este ano o esforço alfabetizador está sendo mais do que triplicado para que se chegue ao final de 2010 com um milhão de pessoas alfabetizadas. Quatro anos contra 40 anos. Há pessoas de mais de cem anos de idade estudando.

Por todo o país, sobretudo onde há governos com visão social, há uma corrida em busca da educação. Estamos longe da República de Platão, mas a educação mais do que um direito hoje se tornou numa conquista magnética. No passado não muito distante educação era um privilégio. É preciso ver esse aspecto do país porque é preciso recriar a utopia. Um país sem utopia é um país condenado ao autoritarismo. Todos os utopistas do século XIX, Marx incluso com sua utopia racional, sonharam com a educação das grandes massas. É o que hoje, com maior ou menor qualidade, acontece no país.

Quando recebi a notícia de que Marina e Fernanda Delmondes tinham sido aprovadas em duas universidades de renome mundial, elas tão jovens, lembrei de um utopista geralmente esquecido, mas proeminente no campo da educação. Charles Fourier, francês que tem o seu nome gravado no antigo Kremlin como um dos pais fundadores do socialismo e foi inspirador do direito a felicidade que adorna a constituição americana. Um pensador universal que lançou uma ponte de dialogo entre o socialismo e o liberalismo clássico ( não confudir com o espectro que é o neoliberalismo). Ela sonhou em revolucionar a sociedade educando as pessoas para lidar, em harmonia, com suas paixões, seus desejos, seus instintos mais nobres. E fiquei pensando no papel do professor hoje.

Ele, o professor, não pode apenas ensinar; precisa educar. Aprender com os jovens e não apenas criticá-los, viver se lamentando da alienação das novas gerações. O professor precisa ser um educador. Ver soluções, não apenas os problemas. Olhar com visão de descobridor o novo mundo que começa. Pois o futuro não está no passado, mas no amanhã. O passado apenas ilumina o presente para que possamos descobrir tesouros perdidos e captar os fenômenos no momento em que estão em curso. Mas o passado não é o amanhã. O passado passou. O importa é o curso da história, seus nexos com o presente.

Claro, faz falta aquele ambiente cultural vertiginoso que marcou o Brasil dos anos 60 e que a ditadura nos anos 70 assassinou. Mas podemos criar um novo presente , podemos transformar as pepitas do passado num novo momento em que educação-cultura-política sejam um mesmo movimento. Marina e Fernanda, seguramente não sabem, mas elas são referências para esse novo mundo, que vem brotando aos poucos. Germinando, florescendo.